Cuidado um modo de fazer na vida cotidiana que se caracteriza pela ateno, responsabilidade, zelo e desvelo com pessoas e coisas em lugares e tempos distintos de sua realizao. A importncia da vida cotidiana na produo do cuidado est na oferta de mltiplas questes especficas que circulam no espao da vida social e nos contedos histricos que carregam. O cotidiano produzido social e historicamente sob dois ngulos: primeiro, porque se trata como noo geral e dimenso do conhecimento do vivido, quer dizer, do repetitivo-singular, do conjuntural-estrutural: no cotidiano as coisas acontecem sempre. Segundo, porque essa noo se constri e se identifica com o dia-aps-dia em que tudo igual e tudo muda nada como um dia aps o outro ao menos em algumas sociedades, no em todas.
O dia-aps-dia assim concebido uma dimenso da vida social singular- especfica, o que significa dizer que ele delimita tempos, espaos, interaes, ou seja, um modo de vida, cuja produo de cuidado se faz contextualizada exercendo efeitos e repercusses na vida dos sujeitos e se transformando em experincia humana. O cuidado consiste em um modo de agir que produzido como experincia de um modo de vida especfico e delineado por aspectos polticos, sociais, culturais e histricos, que se traduzem em prticas de espao e na ao de cidados sobre os outros em uma dada sociedade.
Da o cuidado como ato resulta na prtica do cuidar, que, ao ser exercida por um cidado, um sujeito, reveste-se de novos sentidos imprimindo uma identidade ou domnio prprio sobre um conjunto de conhecimentos voltados para o outro. O outro o lugar do cuidado. O outro tem no seu olhar o caminho para construo do seu cuidado, cujo sujeito que se responsabiliza por pratic-lo tem a tarefa de garantir-lhe a autonomia acerca do modo de andar de sua prpria vida.
Cuidar deriva do latim cogitare que significa imaginar pensar, meditar, julgar, supor, tratar, aplicar a ateno, refletir, prevenir e ter-se. Cuidar o cuidado em ato. A origem da prtica de cuidar teve seu incio restrito ao espao domstico, privado, particular. Desde a Grcia Antiga identifica-se que a prtica do cuidar vem sendo exercida no interior das famlias, e sua realizao demandava um saber prtico adquirido no fazer cotidiano, passando, assim, de gerao a gerao. Nesta poca, a gesto do cuidado era uma tarefa feminina. Quem cuidava da casa dos filhos, dos escravos dos doentes eram as mulheres. Alis, uma responsabilidade bastante repetida at os dias de hoje em muito cotidianos familiares.
Em um determinado momento, boa parte desse saber foi concebido como profisso de mulheres e para mulheres, sobretudo na sade foi a enfermagem a profisso que mais incorporou a prtica do cuidar como campo de domnio prprio. No toa que a prtica de cuidar est histrica e culturalmente conectada ao feminino, pois, ao longo dos anos, essa atividade esteve atrelada trajetria desenvolvida pela mulher nas sociedades ocidentais modernas. Por outro lado, a prtica de pesquisar, ou seja, de criar novos conhecimentos, historicamente, tem sido concebida como prtica masculina. Vemos nesta concepo uma expresso da diviso social e sexual do trabalho, na qual a sociedade delimita com bastante preciso os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma como escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.
Pierre Bourdieu um dos autores que destaca que o mundo social produz nos sujeitos um modo de ser e de estar no mundo, e este diferenciado para homens e mulheres. Ou seja, a sociedade acaba por imprimir na mulher um conjunto de valores que lhe confere uma performance especfica. Entretanto, vrios movimentos reflexivos de crtica a esse modelo societal de diviso do trabalho, sobretudo com a contribuio do movimento feminista e sua produo de conhecimentos, tm contribudo de forma decisiva para modific-lo. No mundo contemporneo, constata-se que a prtica de pesquisar sinrgica prtica do cuidar e vice-versa, na medida em que a vida cotidiana evidencia cada vez mais a crescente demanda por cuidado. Mais que isso, constata-se que a demanda por cuidado vem, dia aps dia, se complexificando, o que tem exigido cada vez mais a atuao de diferentes sujeitos-cidados-profissionais, mulheres e homens, cujo outro demandante, cada vez mais requerer ateno, responsabilidade, zelo e desvelo com seus desejos, suas aspiraes e especificidades, de modo a inclu-lo na tomada de deciso sobre sua vida, ou melhor dizendo, sobre sua sade.
Cuidado em sade no apenas um nvel de ateno do sistema de sade ou um procedimento tcnico simplificado, mas uma ao integral que tem significados e sentidos voltados para compreenso de sade como o direito de ser. Pensar o direito de ser na sade ter cuidado com as diferenas dos sujeitos respeitando as relaes de etnia, gnero e raa que so portadores no somente de deficincias ou patologias, mas de necessidades especficas. Pensar o direito de ser garantir acesso s outras prticas teraputicas, permitindo ao usurio participar ativamente da deciso acerca da melhor tecnologia mdica a ser por ele utilizada.
Cuidado em sade o tratar, o respeitar, o acolher, o atender o ser humano em seu sofrimento em grande medida fruto de sua fragilidade social , mas com qualidade e resolutividade de seus problemas. O cuidado em sade uma ao integral fruto do entre-relaes de pessoas, ou seja, ao integral como efeitos e repercusses de interaes positivas entre usurios, profissionais e instituies, que so traduzidas em atitudes, tais como: tratamento digno e respeitoso, com qualidade, acolhimento e vnculo.
O cuidar em sade uma atitude interativa que inclui o envolvimento e o relacionamento entre as partes, compreendendo acolhimento como escuta do sujeito, respeito pelo seu sofrimento e histria de vida. Se, por um lado, o cuidado em sade, seja dos profissionais ou de outros relacionamentos, pode diminuir o impacto do adoecimento, por outro, a falta de cuidado ou seja o descaso, o abandono, o desamparo pode agravar o sofrimento dos pacientes e aumentar o isolamento social causado pelo adoecimento. O modelo biomdico que orienta o conjunto das profisses em sade, ao se apoiar nos meios diagnsticos para evidenciar lees e doenas, afastou-se do sujeito humano sofredor como totalidade viva e permitiu que o diagnstico substitusse a ateno e o cuidado integral sade. Entretanto, mais do que o diagnstico, os sujeitos desejam se sentir cuidados e acolhidos em suas demandas e necessidades. O cuidado em sade uma dimenso da integralidade em sade que deve permear as prticas de sade, no podendo se restringir apenas s competncias e tarefas tcnicas, pois o acolhimento, os vnculos de intersubjetividade e a escuta dos sujeitos compem os elementos inerentes sua constituio.
O cuidado uma relao intersubjetiva que se desenvolve em um tempo contnuo, e que, alm do saber profissional e das tecnologias necessrias, abre espao para negociao e a incluso do saber, dos desejos e das necessidades do outro. O trabalho interdisciplinar e a articulao dos profissionais, gestores dos servios de sade e usurios em redes, de tal modo que todos participem ativamente, podem ampliar o cuidado e fortalecer a rede de apoio social. Com isso, a noo de cuidado integral permite inserir, no mbito da sade, as preocupaes pelo bem estar dos indivduos opondo-se a uma viso meramente economicista e devolver a esses indivduos o poder de julgar quais so suas necessidades de sade, situando-os assim como outros sujeitos e no como outros-objetos.
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